📸 Foto: Jairo Adoleta
Em março de 2017, acompanhei de perto o alÃvio de Marina, proprietária de uma churrascaria tradicional em Salvador, quando finalmente compreendeu o significado da "Tese do Século". "Doutor, quer dizer que há anos estou pagando imposto sobre um dinheiro que nunca foi meu?" Exatamente. O ICMS que ela recolhia ao Estado estava servindo de base para calcular PIS e COFINS – uma distorção que o Supremo Tribunal Federal finalmente corrigiu.
Hoje, oito anos depois, vejo-me na ingrata missão de alertar Marina e milhares de empresários: o governo federal articula, através da ADC 98, não apenas reverter essa conquista, mas ampliar drasticamente a base tributária do setor produtivo.
O princÃpio sob ataque: quando o óbvio precisa ser defendido
A "Tese do Século" estabeleceu algo que deveria ser elementar no Direito Tributário: só constitui receita aquilo que efetivamente se incorpora ao patrimônio da empresa. O ICMS, o ISS, e outros tributos que transitam pelo caixa são recursos de terceiros – você é mero agente arrecadador do Estado.
O Supremo Tribunal Federal reconheceu que tributar esses valores equivale a cobrar imposto sobre imposto – uma aberração jurÃdica que penalizava duplamente o empreendedor. A decisão não foi um favor aos empresários; foi o restabelecimento da lógica constitucional.
Agora, através da Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 98, protocolada em setembro de 2025, a Advocacia-Geral da União busca estabelecer que todos os valores que passam pelo caixa – incluindo impostos – devem compor a base de cálculo do PIS e da COFINS. É a tentativa de transformar em receita aquilo que nunca pertenceu à empresa.
Os três frontes de batalha: entenda o que está em jogo
Primeiro ataque: o ISS volta à base de cálculo (Tema 118)
Seu restaurante presta serviços e recolhe ISS. Esse imposto municipal, que você paga religiosamente, voltaria a ser considerado "receita" para fins de PIS/COFINS.
Para estabelecimentos no Lucro Presumido, isso significa uma expectativa de aumento da carga tributária em cerca de 3,65% sobre cada real de ISS pago. No Lucro Real, essa expectativa sobe para aproximadamente 9,25% sobre o ISS recolhido.
O que a União argumenta? Que o ISS está "embutido" no preço do serviço. O que nós sabemos? Que o ISS é recolhido ao municÃpio – nunca se torna patrimônio da empresa.
Segundo ataque: tributando o incentivo fiscal (Tema 843)
Muitos Estados concedem crédito presumido de ICMS para estimular a economia local. É um benefÃcio fiscal legÃtimo que reduz a carga tributária estadual. A ADC 98 pretende que esse benefÃcio – esse desconto que você recebe – seja tratado como se fosse receita nova.
É como se o desconto que você negocia com seu fornecedor virasse base para novo imposto. Estabelecimentos no Lucro Presumido enfrentariam expectativa de aumento da carga em cerca de 3,65% sobre esses benefÃcios. No Lucro Real, cerca de 9,25%.
Terceiro ataque: o imposto que se alimenta de si mesmo (Tema 1067)
Esta é a distorção mais perversa: incluir o próprio PIS e COFINS em suas bases de cálculo. É matemática circular que cria um efeito cascata infinito.
Tecnicamente, isso geraria uma expectativa de aumento da carga tributária total em cerca de 3,3% a 3,8% para todos os contribuintes nos regimes de Lucro Presumido e Real. É o imposto se retroalimentando – uma aberração lógica e jurÃdica.
O impacto real por regime tributário: ninguém escapa
Se você está no Simples Nacional
Aparentemente protegido pela alÃquota unificada, você não está imune. O ICMS antecipado e a substituição tributária que você paga podem ser reinterpretados. Mais grave: seus concorrentes, e principalmente seus fornecedores, nos outros regimes terão custos majorados e pressionarão o mercado por reajustes que você não conseguirá acompanhar sem sacrificar suas margens já apertadas.
Se você está no Lucro Presumido
Você enfrenta o impacto triplo. A expectativa é de aumento da carga tributária total em cerca de 7% a 8%, considerando os três temas. É o regime mais atingido proporcionalmente, pois não tem a mesma capacidade de creditamento do Lucro Real nem a proteção unificada do Simples.
Se você está no Lucro Real
Embora as alÃquotas sejam maiores (9,25% combinadas), você tem alguma capacidade de creditamento. Ainda assim, a expectativa de aumento da carga tributária gira em torno de 7% no total. O ISS não gera crédito, o que torna o impacto particularmente doloroso para operações com alto componente de serviço.
A manobra processual: risco à segurança jurÃdica e à estabilidade dos precedentes
O que se verifica no contexto da ADC 98 é uma tentativa de reabrir discussão já apreciada pelo Supremo Tribunal Federal em processos anteriores, nos quais havia maioria formada para reconhecer a exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e da COFINS (Tema 118).
Ocorre que, com a aposentadoria de três ministros que haviam votado em favor dos contribuintes, a Advocacia-Geral da União optou por propor nova ação, buscando reiniciar o julgamento sob a ótica da atual composição da Corte.
Embora a União possua legitimidade constitucional para propor ações declaratórias de constitucionalidade (art. 103, VI, da CF/88), a utilização desse instrumento como meio de alterar decisões já consolidadas configura ameaça grave à segurança jurÃdica e à coerência jurisprudencial.
Tal estratégia não representa uma busca genuÃna por justiça, mas sim um oportunismo processual, cujo efeito prático é fragilizar a previsibilidade do Direito Tributário e minar a confiança dos contribuintes na estabilidade das decisões do STF. Se prevalecer, cria-se um precedente perigoso: a cada mudança na composição da Corte, o governo poderá tentar rediscutir matérias já pacificadas, comprometendo a autoridade dos precedentes e a própria noção de Estado de Direito.
A União faz suas contas, nós pagamos a conta
O governo federal estima recuperar R$ 117 bilhões com essa manobra. Para o setor de alimentação fora do lar, isso significa bilhões a mais em tributos anualmente – recursos que sairão do capital de giro, do investimento em melhorias, da geração de empregos.
Enquanto a AGU fala em "pacificação" e "segurança jurÃdica", nós sabemos a verdade: é tentativa de arrecadação desesperada, à s custas de um setor que emprega milhões e já opera com margens mÃnimas.
A verdade que precisa ser dita
A ADC 98 não se restringe apenas a uma questão de interpretação jurÃdica. É sobre o governo tentar reescrever as regras do jogo depois que perdeu. É sobre transformar vitórias legÃtimas dos contribuintes em derrotas através de manobras processuais.
O Supremo Tribunal Federal tem em suas mãos não apenas uma questão tributária, mas o destino de milhares de negócios. A coerência jurisprudencial, o respeito aos precedentes e a manutenção da segurança jurÃdica são essenciais para que o ambiente de negócios brasileiro tenha um mÃnimo de previsibilidade.
"A batalha da ADC 98 não é apenas sobre impostos. É sobre justiça, sobre respeito às decisões judiciais, sobre a viabilidade econômica de continuar empreendendo no Brasil."