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A nova atração da TV: transmissão de sequestros

A nova atração da TV: transmissão de sequestros
Malu Fontes

Malu Fontes

16/05/2023 4:31pm

A população está tão acostumada com as infinitas faces da violência que entorpeceu o olhar e só se deixa assombrar de comoção ou de espanto nos casos que passamos a chamar de bárbaros. A morte por violência perdeu o sentido. Só adquirem notoriedade e significância, tanto na cobertura jornalística quanto na repercussão social, as mortes agora com direito a um adjetivo. A morte num crime bárbaro, a morte trágica. E cada vez é preciso mais barbaridade, mais tragédia, mais calamidade para que uma morte mereça destaque e relevância. Fora disso, parece mais um registro, mais um ponto, um ponto a mais na estatística semanal, mensal e anual. E, assim, estamos todos nos acostumando a ligar a TV de manhã cedo e a consumir, quase com apatia, a mais uma imagem de um corpo encontrado morto numa praça, numa vala, na estrada; a mais meia dúzia de soldados do tráfico mortos num confronto de facções ou em troca de tiros com a polícia.

Mais recentemente, estamos sendo adestrados rumo ao torpor diante de uma modalidade de crime que, de raro, passou praticamente a rotineiro: a banalização da cobertura de atos criminosos com reféns. A normalização desse tipo de violência, sem que a gente se desse conta, mudou até de formato jornalístico. Nem é mais cobertura. É, literalmente, transmissão ao vivo. Um traficante qualquer entra em rota de fuga com a polícia e faz o quê? Faz a namorada de refém, transforma num escudo e faz o quê? Manda recado pela polícia ou pelo WhatsApp da família exigindo a presença da imprensa. E a imprensa nem vai, é pior: já está lá transmitindo tudo para todos os telespectadores. E, claro, para o sequestrador, que vai decidindo e anunciando o que ou deixa de fazer com base no que assiste sobre ele mesmo ao vivo na TV do cômodo da casa ou do lugar onde ele está com uma faca no pescoço de um refém ou com uma arma apontada pra cabeça de alguém. É isso: temos uma especialidade nova no telejornalismo local. A transmissão de sequestros ao vivo. 

Se isso é correto, do ponto de vista da inteligência policial, aqui vai um pedido público e antecipado de desculpas pela reflexão proposta. Diante da dúvida leiga, no entanto, perguntar não é pecado nem vergonhoso. Qual é a função social do jornalismo no momento em que está acontecendo um sequestro? A presença de jornalistas, cinegrafistas, fotógrafos e a transmissão são elementos que ajudam na ação policial? Para a polícia isso é correto? Se sim, está tudo certo. Qual é o impacto disso para o desfecho do crime? Transmitir é importante para quem? Para o quê, além do óbvio, que é servir para alavancar, em muito, a audiência das emissoras que transmitem? Com a palavra, a polícia. As emissoras e os veículos de imprensa a gente já sabe como pensam e como responderão estas perguntas. 

Nesta segunda-feira, 15 de maio, foram 40 minutos de transmissão ao vivo de um sequestro com reféns, por volta das oito horas da manhã de um sequestro com reféns.

Texto extraído do comentário semanal da jornalista Malu Fontes veiculado pela rádio Metrópole FM em 15 de maio, disponível no site do Metro1.