Artigos

Boa ideia não basta quando o contexto fala mais alto

Boa ideia não basta quando o contexto fala mais alto
Verônica Villas Bôas

Verônica Villas Bôas

23/12/2025 2:30pm

Arte: Let's Go Bahia

A recente polêmica em torno da nova campanha da Havaianas revela menos sobre ideologia e muito mais sobre um desafio central da comunicação contemporânea: a dificuldade de sustentar uma boa ideia quando o contexto se impõe com força total.

A campanha atual dialoga claramente com uma ação anterior da marca, feita há cerca de quatro anos com Romário. Naquele momento, o roteiro explorava o fator sorte ao brincar com a superstição do “pé esquerdo”, desejando azar a Maradona. A narrativa era direta, provocativa e coerente com o espírito do futebol e do humor popular.

A campanha deste ano segue outra direção. O foco não está mais na sorte ou no azar, mas na atitude. A proposta é justamente desconstruir essa lógica supersticiosa para reforçar decisão, protagonismo e ação consciente. A mensagem literal é clara, positiva e alinhada ao histórico da marca.

Do ponto de vista criativo, o roteiro funciona. É bem construído, tem conceito, tem coerência e transmite uma ideia inspiradora. Isoladamente, não há problema no texto.

O ruído surge fora dele.

Não faz sentido imaginar que uma marca do porte da Havaianas, que sempre transitou com neutralidade, tenha tido qualquer intenção deliberada de provocar politicamente ou de ridicularizar um campo ideológico específico. Isso não seria estratégico nem coerente com sua trajetória. Menos ainda inteligente! O que parece ter ocorrido foi uma falha na leitura do contexto mais amplo, somada a um encantamento excessivo com a força criativa da ideia.

O ponto sensível está na escolha da voz que representa a campanha. A garota-propaganda é uma figura publicamente identificada com a esquerda. E isso, por si só, não é um problema. Fernanda Torres é uma atriz brilhante, talentosa e respeitável, e sua posição política é absolutamente legítima, como a de qualquer cidadão em um país democrático.

O problema não está na pessoa, mas na soma de fatores. Quando uma marca escolhe quem a representa, ela precisa avaliar todas as camadas de percepção pública associadas àquela figura. Goste ou não, essas camadas existem. E num ambiente nacional profundamente polarizado, às vésperas de um ano eleitoral, elas ganham peso redobrado.

Vale notar que a própria Fernanda vinha protagonizando campanhas contínuas da Havaianas ao longo do ano sem qualquer ruído. O roteiro anterior não gerou controvérsia. O que mudou nessa campanha foi a soma entre o roteiro e o contexto. A conjunção entre o momento político, o posicionamento público da atriz e o texto da campanha criou uma ambiguidade desnecessária que, previsivelmente, seria capturada, amplificada e ressignificada.

Esse é o ponto central.

A campanha é boa. A ideia é boa. A mensagem é positiva. O que faltou foi uma análise de risco mais ampla, compatível com o ambiente em que foi lançada. 

Comunicação hoje exige antecipação de leitura. Exige pensar com a cabeça de todos os lados. Exige compreender que intenção não garante interpretação.

A mágica da comunicação está exatamente aí. Entre o que se pensa, o que se diz, como o outro escuta e o que ele entende, existe um abismo gigante! A comunicação só acontece de fato quando todas essas camadas convergem e se fazem entender com clareza.

Num país, e num mundo, profundamente polarizados, não dá mais para a publicidade se sustentar apenas na boa ideia. O contexto tem um peso imenso. Ele se impõe, se sobrepõe e, muitas vezes, fala mais alto do que o texto, do que a intenção e até do que a própria criação.

Ignorá-lo é como exagerar no tempero de uma bela comida. Ele rouba completamente o gosto do prato.