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Transformação e esperança: democracia

Coluna Let's Go Reflexões

Transformação e esperança: democracia
Fernando Machado - Consultor Internacional (Inovação & Competitividade)

Fernando Machado - Consultor Internacional (Inovação & Competitividade)

28/01/2021 10:00pm

Nas transformações, a dicotomia entre o otimismo e o pessimismo nada mais é que uma cortina de ilusão. Entre perceber o tigre ou os morangos, o cérebro humano sempre verá o tigre. O “vai dar tudo certo” pode ter conotações místicas, mas a terapia holística do Gestalt nos ensina que nada muda até que se torne o que verdadeiramente é. Otimismos e pessimismos exagerados mascaram a verdadeira natureza dos desafios da raça humana e provocam inação de alto custo.

Segundo Y.N. Harari, nossas vidas são guiadas por conjuntos de narrativas ficcionais e incompletas, de natureza cultural, econômica, nacionalista, religiosa e outras. Ficcionais por serem invenções do ser humano, para possibilitar a cooperação em larga escala. As pessoas raramente põem sua crença numa única narrativa ficcional, o que lhes permite ter várias identidades. Ao encontrar buracos, omissões ou contradições numa narrativa, podem, perfeitamente, conforme suas necessidades do momento, passar de uma para outra narrativa ficcional, seja essa compatível ou não com a narrativa anterior, apesar das dissonâncias cognitivas correspondentes.

A observação do momento atual da humanidade sugere, ao mesmo tempo, a catastrófica possibilidade que todos esses conjuntos de narrativas estão naufragando de forma simultânea, e uma oportunidade de ouro para conceituar e implementar um novo conjunto de narrativas aterrissadas na realidade comprovável, evitando a catástrofe. A necessidade premente de conscientizar-se dessas dissonâncias cognitivas e abandonar zonas de conforto, para poder perceber essa realidade e a magnitude dos processos de transformação requeridos, é o maior desafio atual da humanidade, começando pelo sistema atual de organização social, a democracia.

"As causas da cegueira e da surdez quanto à deterioração da democracia são muitas"

(Fernando Machado)

Recentes pesquisas no país revelaram que quase 70% dos brasileiros apoiam a democracia. O Centro para o Futuro da Democracia da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, que estuda o estado da democracia em 154 países desde 1995, divulgou há pouco que a democracia apresentou, nesses países, seu maior nível de rejeição em 2019, quase 60%. A pergunta que não quer calar é: será que o povo brasileiro está sofrendo de surdez e cegueira generalizadas?

Em todo o mundo, inclusive no Brasil, a nave da democracia faz água por todos os lados, enquanto seus tripulantes, cegos e surdos ao naufrágio, pelo medo do falsamente obrigatório antípoda, a ditadura, pela polarização de opiniões sobre onde aportar a nave, e pela justiça na distribuição da comida, entre outros condicionantes de gênero e raça, remendam velas, recalculam o rendimento do combustível e lustram o convés. Para exacerbar a cegueira, chega uma tempestade vestida de pandemia.

Em uma realidade global em que mudanças radicais em constante aceleração criam transformações fundamentais nas tecnologias, economias, culturas, valores e crenças, seria absurdo crer que um sistema de organização social, interdependente de tudo isso, chamado democracia, estaria imune ao caos estrutural generalizado.

As causas da cegueira e da surdez quanto à deterioração da democracia são muitas. Há um século, os Estados Unidos utilizam a bandeira da democracia para promover seus interesses em todo o mundo. Desta forma, o país mais poderoso do globo tem sido o tradicional promotor da democracia no planeta, tornando tabu qualquer movimento sério de repensá-la. Associado aos interesses de autopreservação dos donos locais do poder político, esse tabu nunca permitiu questionar a democracia, herança imutável dos gregos, gerada há 3.000 anos.

Já nos seus primórdios, a democracia foi combatida por Platão e Sócrates. Por essa razão, este último foi condenado à morte pelos donos do poder de então. Cicuta nele, e Platão, revoltado com a execução de seu discípulo, presenteou a humanidade com o conceito do inferno, Hades. A balela que sintetiza os princípios democráticos, governo do povo, pelo povo e para o povo, não passa de uma quimera histórica sem fundamento, jamais existiu. Na democracia indireta, o poder sempre esteve em mãos de uma representação que, em todo o mundo, sempre o exerceu sem muita preocupação sobre as demandas do povo.

Desde a sua origem liberal na Grã-Bretanha, nunca foi um propósito empoderar populações, mas, sim, criar instituições para governar, elaborar e fazer cumprir leis, em nome do povo, e para coibir manifestações populares contrárias às decisões dessas instituições. Já em 1774, Burke pregava que a essência do dirigente de governo estava em viver em estreita união com os constituintes, mas não em sacrificar sua própria e iluminada opinião em atendimento a nenhum conjunto de pessoas vivas (abrindo caminho para justificar decisões em atendimento às demandas dos mortos). Sacrificar seu juízo em favor de opiniões do povo representaria um ato de traição à nação.

Com seu prestígio pós-guerra, ao postular a democracia como um péssimo sistema, mas os alternativos como muito piores, Churchill mimetizou o diretor do Departamento de Registro de Patentes dos EUA, quem, em pleno século 20, propôs ao governo fechar o registro, pois todas as invenções que a humanidade era capaz de fazer já haviam sido feitas.

Para complicar, quando identidades pessoais e sistemas sociais são construídos sobre uma narrativa central como a democracia, torna-se extremamente difícil duvidar dela, não porque existam evidências e fatos que a sustentem, mas porque seu colapso poderia desencadear um insuportável cataclismo social e existencial, a nível pessoal. Deste modo, os que sonham com sistemas de organização social que nunca existiram e perguntam “por que não?” foram esmagados pelos que olham para o deterioro do que aí está e perguntam por quê? O que aconteceu?

Além disso, como diz David Runctman, professor de Política da Universidade de Cambridge, em seu livro “How Democracy Ends”, o erro de negar e desconhecer os efeitos da deterioração da democracia e estar cegos quanto ao estado terminal da mesma é seguir programando e realizando eleições, elegendo “salvadores”, formando governos, congressos, aprovando ainda mais leis vinculadas a um passado que já não existe, ter cortes jurídicas passando sentenças com base nessas mesmas leis, constituições e consciências obsoletas, enquanto o sistema democrático continua em declínio, falhando continuamente, exaurido. Este é o erro de adiar as mudanças radicais requeridas por um novo sistema de organização social.

Tudo isso tem um terrível custo social, provoca sucessivas ondas de volatilidade crescente que prolongam o descrédito e o medo nas populações, gerando intensas pressões populares por soluções radicais de curto prazo e de baixa viabilidade, que terminam por acelerar mais ainda a deterioração democrática, criando espaço para populismos e nacionalismos xenófobos, e ampliando a complexidade das possíveis soluções.

Mas já não se pode tapar o sol com uma peneira, sob pena de que a esperança tome a interpretação que lhe foi atribuída por Nietzsche e Kierkegaard de um falso alento que estimula a aceitação da escravidão. Enquanto a cegueira e a surdez estiverem aí, teremos todos que ser ubermenchen.