Li o filósofo John Rawls pela primeira vez há uns quinze anos atrás, quando ainda era jovem demais para entender a profundidade de seu pensamento. Dizer que “a sociedade deve ser bem-organizada” me soava estranhamente pueril. Hoje, relendo-o, considero este um dos mais profundos conceitos do Ocidente dos últimos 100 anos.
O autor reduz realisticamente as pretensões coletivas. Quando uma sociedade se coloca metas inalcançáveis, o resultado será uma profunda frustração e ressentimento dos indivíduos que passarão a se sentir prejudicados pelas promessas não cumpridas. As grandes ideologias prometeram demais e testaram reengenharias sociais que produziram totalitarismo. Nazismo e comunismo, após tentarem redesenhar os indivíduos, produziram apenas milhões de mortos e muito sofrimento. Aniquilaram o indivíduo, a criatividade, a liberdade. Mas nacionalismo e liberalismo, muito menos extremistas, também não entregaram a redenção que apregoaram. O motivo é simples: não há redenção.
O liberalismo de Rawls é modesto e, por isso mesmo, profundo. Trata-se, tão somente, de propor que a sociedade funcione bem. Para isso, o estado deve ter o tamanho adequado para cumprir suas funções fundamentais: proteção das fronteiras, segurança pública, impostos razoáveis, macroeconomia equilibrada, ambiente regulatório claro e eficiente, saúde, educação e previdência disponíveis, acessíveis e sustentáveis. O mercado deve ser aberto, pujante, criativo, inovador, capaz de ofertar os bens necessários e de criar outros que ainda não sonhamos que precisamos. E a sociedade civil deve ser forte e livre, com indivíduos autônomos, resilientes, dispostos a arriscar para conquistar objetivos e fortes o suficiente para tentar de novo quando perderem, sem ressentimentos e mágoas. Indivíduos viverão suas conquistas e prazeres, mas também seus fracassos, medos e dores. Não haverá garantias de que alcançarão a felicidade, mas a todos será garantido o direito de tentar.
Nessa sociedade bem-organizada, os mais habilidosos competem pela atenção dos outros através da demonstração de seus méritos. Os menos habilidosos buscam aprimorar suas competências, qualificar-se, comparam-se positivamente com bons exemplos de seus pares, olham para os bem-sucedidos sem inveja, reconhecem o valor das contribuições dos demais. Mas há também, e nada há de errado nisso, muitos que almejam pouco, que querem apenas ter um emprego cujo salário pague as despesas básicas de uma vida suficientemente digna. Estes também prestarão serviços fundamentais à sociedade, mas assumirão menos riscos e, portanto, receberão menos prêmios.
A boa relação proporcional entre risco e prêmio é, portanto, fundamental para que a sociedade seja bem-organizada.
Ao indivíduo com estabilidade na carreira e aposentadoria garantida, que obedece a ordens e, portanto, arrisca-se pouco, destina-se um salário menor do que o do indivíduo da iniciativa privada, que prefere arriscar mais em busca de maiores ganhos. Nos Estados Unidos, por exemplo, jamais escutei um jovem recém-formado em uma boa universidade dizer que sonha ser funcionário público em Washington. Jamais alguém sairá de Los Angeles para trabalhar em uma repartição pública na capital federal. Nunca um ofício burocrático e repetitivo irá superar, em salário, o que se paga nas melhores empresas do mercado para jovens qualificados, mentes brilhantes sedentas de aventura, riscos e prêmios.
Se nossos melhores jovens sonham com um concurso público ou em morar em Brasília, se os desejos das nossas mais qualificadas mentes é ter segurança e arriscar nada, e se os salários médios do setor público são maiores do que os pagos pela iniciativa privada isso apenas demonstra que nossa sociedade está muito longe de ser bem-organizada. O caos que testemunhamos todos os dias apenas revela que Rawls tinha razão.
*Felippe Ramos, 35, é sociólogo, especialista em risco político, crises constitucionais e populismo. Faz doutorado em Sociologia na The New School, de Nova York. Para conhecer o curso em Risco Político e Análise de Mercado, acesse: https://metodofranalise.kpages.online/cursoriscopoliticoanalisedemercado