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Com três séculos de existência, Festa de Santa Bárbara simboliza fé e resistência do povo baiano

Com três séculos de existência, Festa de Santa Bárbara simboliza fé e resistência do povo baiano
Ana Virgínia Vilalva

Ana Virgínia Vilalva

04/12/2023 11:45am

Foto: Bruno Concha

Jorge Amado, um dos escritores mais lidos do país, já dizia que a Bahia é rica em festas populares. Festas de rua, de igreja e de Candomblé. E que guardam todas elas nossa marca original de miscigenação, de nossa civilização mestiça. De fato, são muitas festas. E quem abre esse calendário de festas populares, que começa em dezembro e se estende até o Carnaval, em fevereiro, é a Festa de Santa Bárbara, uma das mais bonitas de Salvador, por estampar a cor vermelha e branca pelas ruas do Centro Histórico, pelo simbolismo da força feminina, pelo fervor das pessoas e pelo cheiro convidativo do caruru e do dendê.

Todos os anos, centenas de pessoas vestem vermelho e branco no dia 4 de dezembro; as baianas colocam os seus melhores adereços, se perfumam, e todas essas pessoas vão ao Largo do Pelourinho acompanhar a missa campal dedicada à santa, às 8h.

Devota de Santa Bárbara e pesquisadora da festa, Carla Bahia a descreve com paixão. “A festa de Santa Bárbara, por si só, chama atenção. Ela é quente. Ela não é só vermelha, é vermelha, branca, rosa. Ela tem brilho, tem borboletas nos torsos. Ela tem perfume de acarajé, de dendê. Ela tem brilho nos olhos, tem pedido de: ‘Por favor, minha mãe, não me abandone’. Ela tem afeto, mas também tem humanidade. Tem gingado e um remelexo. Diz-se que a parte mais sagrada da festa é na manhã. Depois da procissão e que a santa se recolhe na igreja, seus filhos vão brincar a festa. Então, você sai do que as pessoas chamam de sagrado para o que seria profano. E tem samba, comida, pedido, e grito de Saravá, e grito de Epà Hey”, conta.

Como já ocorre por oito anos, este ano o ato litúrgico será presidido pelo capelão, cônego Lázaro Muniz. Logo após a celebração, a imagem de Santa Bárbara seguirá em procissão, juntamente com as imagens de outros santos, a exemplo de São Miguel, São Jerônimo, São Cosme e São Damião, pelas Ruas Gregório de Mattos e João de Deus, passará pelo Terreiro de Jesus, Praça da Sé e descerá a Ladeira da Praça até o quartel do Corpo de Bombeiros Militar da Bahia (CBMBA), onde há um momento de saudação à padroeira da corporação.

No Corpo de Bombeiros, há uma pausa também para comer o caruru, alimento representativo da festa. Este ano, o CBMBA vai distribuir 1.500 quentinhas de caruru durante os festejos, ao meio-dia, no quartel do 1º Batalhão de Bombeiros Militar, na Barroquinha. Após a saudação, a procissão segue pela Avenida José Joaquim Seabra (Baixa dos Sapateiros), tem uma nova parada no Mercado de Santa Bárbara para saudar os filhos de Santa Bárbara e de Iansã que lá estão e depois retorna ao ponto de partida pela Rua Padre Agostinho Gomes.

Ao longo da história, a festa já foi celebrada em outros lugares: primeiro no Morgado de Santa Bárbara, no Comércio, depois na Igreja do Corpo Santo, mas também já foram celebradas missas para a santa na Basílica de Nossa Senhora da Conceição da Praia e na Igreja do Passo, no Santo Antônio Além do Carmo.

Início da devoção – Segundo pesquisadores, o culto à Santa Bárbara teria chegado primeiro em Salvador por um casal de portugueses, Francisco Pereira Lago e Andressa Araújo. Eles teriam trazido uma imagem de Santa Bárbara no Século XVII e instituído o morgado de Santa Bárbara na região do Comércio, em 1641. O morgado era uma forma de organização da linhagem familiar, na qual as propriedades eram inalienáveis e passadas para o filho primogênito, após a morte do proprietário.

O morgado de Santa Bárbara era uma edificação composta por prédios, pela capela de Santa Bárbara, construída em honra à mártir, e pelo Mercado de Santa Bárbara, que era um dos principais centros de abastecimento da cidade. Com isso, Santa Bárbara, que é padroeira do Corpo de Bombeiros, dos Mineiros e Artilheiros, passou a ser a protetora dos mercadores. Protetora contra a morte trágica e contra os perigos dos raios e tempestades, a santa pode ter sido invocada também pelos navegadores durante as viagens marítimas.

Segundo a tese de autoria de Vagner José Rocha Santos, doutor em estudos étnicos e africanos pela Universidade Federal da Bahia, e registros de jornais no Século XIX, a Festa de Santa Bárbara sempre contou com a participação maciça de negros escravizados e a organização dos populares do morgado. Em 1899, um incêndio comprometeu a estrutura da Capela de Santa Bárbara, no Comércio. Milagrosamente, as chamas não afetaram a imagem da santa. Com isso, a capela foi demolida e a imagem transferida para a Capela de São Pedro Gonçalves, conhecida como Igreja do Corpo Santo, que funciona até os dias atuais no Comércio.

A missa à Santa Bárbara passou a ser celebrada na Igreja do Corpo Santo e a festa, “a diversão”, como retratada em alguns jornais, continuou sendo realizada no Mercado de Santa Bárbara até 1912. Em 1913, o mercado situado no Comércio foi totalmente demolido, devido a alguns fatores, entre eles as obras de ampliação do porto. Com o tempo, os comerciantes foram transferidos para o novo Centro Comercial da Baixa dos Sapateiros, levando a sua devoção e dando continuidade à organização da festa anual.

Mas antes dessa transferência para o Centro Comercial da Baixa dos Sapateiros, a Festa de Santa Bárbara viveu um momento de declínio com a demolição da Igreja de Santa Bárbara e do mercado do Comércio, período em que, devido à ausência de citações nos jornais da época, tudo indica que a celebração tenha ficado sem procissão.  

Na década de 90, atendendo a um pedido dos próprios comerciantes do Mercado de Santa Bárbara, já em funcionamento na Baixa dos Sapateiros, a imagem de Santa Bárbara foi para a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos, no Largo do Pelourinho, pela história e tradição do templo, para que o santuário pudesse ser mantenedor da imagem e também da festa no Centro Histórico de Salvador.

“É sempre uma honra celebrar a festa de Santa Bárbara, sempre uma alegria, porque é uma festa que, pela sua espontaneidade, se estabelece, porque o povo vem, os devotos chegam e a gente não precisa fazer grandes movimentações, pois os devotos estão aí e vêm rezar, porque já tem no sangue essa devoção. É uma celebração que traduz muito a acolhida das pessoas diversas, de diversos segmentos religiosos, marcados por uma fé de simplicidade, porque Santa Bárbara é uma santa de simplicidade”, conta padre Lázaro.

Ele lembra que o tema da festa este ano é: “Santa Bárbara, filha da Virgem Maria, fazei germinar em nós a esperança de um mundo mais humano, fraterno e igualitário”. “O desejo é que, com a proximidade do Natal, o senhor faça germinar a vida, uma vida nova, do Jesus que nasce no coração dos homens e mulheres, e que esse nascer traga a esperança por um mundo melhor, mais fraterno e igualitário. Que Santa Bárbara, essa jovem que deu a vida de uma forma tão simples, nos ajude também para que na simplicidade possamos construir um mundo melhor para todos, não só para nós, mas para toda a humanidade”, espera padre Lázaro.

Fé e resistência – Conta a história que a jovem Bárbara viveu no Século III depois de Cristo na região da Ásia Menor. Seu pai era alto funcionário do imperador e toda a família cultuavam os deuses do império, mas ela se converteu ao cristianismo, se comprometendo a servir a Cristo como único Deus, mesmo que essa decisão custasse a sua própria vida. Por essa decisão, Bárbara foi aprisionada, torturada, teve o seio arrancado, e depois morta pelo seu próprio pai, que a decapitou com uma espada. Após a morte, o céu se fechou e Dióscoro (pai de Bárbara) teria sido atingido por um raio que o matou.

Adeptos do candomblé fazem questão de enfatizar a distinção entre Santa Bárbara e Iansã. Iansã é orixá feminino, seu nome tem origem no iorubá Ìyá Mésàn, o rio de nove braços, em referência ao Rio Níger, morada de Iansã. Algumas pessoas referem-se à Iansã como a mãe dos nove filhos. Ela tem sob seu domínio os ventos, trovões e as tempestades. Também chamada de Oiá, é personificada como uma divindade guerreira e sensual, que atrai paixões, tendo tido muitos amores.

Mesmo que seja uma luta dos adeptos das religiões de matriz africana defender a singularidade e a história dos orixás, o sincretismo religioso ainda hoje se faz presente e está intimamente relacionado à fé dos devotos. Portanto, durante a procissão, é comum que as pessoas relacionem Santa Bárbara à Iansã e façam saudação ao orixá feminino com as expressões Oiá e Epà Hey.

Neste dia, é comum também a oferta de caruru para Iansã. O Afoxé Filhos de Korin Efan, situado na Rua do Passo, no Pelourinho, por exemplo, realiza o caruru de Iansã há mais de 20 anos no dia da Festa de Santa Bárbara. Foi uma tradição que começou com o ogan Erenilton na casa de Oxumarê.

“A festa de Santa Bárbara do Afoxé Filhos do Korin Efan é um dia em que a gente reúne católicos, turistas e principalmente adeptos das religiões de matriz africana e faz cortejo pelas ruas do Pelourinho até a nossa sede. Lá, nós temos apresentações culturais, participação de baianas e a distribuição do caruru e acarajé de Iansã. Para nós, o dia 4 é uma data muito importante, porque, nós, enquanto instituição cultural negra com influência do candomblé, celebramos Santa Bárbara e também Iansã. É muito gratificante. E esse ano está sendo um ano muito especial para nós, pois conseguimos patrocínio da Prefeitura para manter vivo esse legado que vem de meu pai”, conta Elisangela Silva, 32 anos, presidente do Afoxé Filhos do Korin Efan.

Carla Bahia ressalta como uma das singularidades da Festa de Santa Bárbara a distribuição do caruru. “Em que lugar do mundo você vai ver homens do Corpo de Bombeiros cortarem quiabos para fazer caruru para uma festa popular? Quantas e quantas vezes homens da corporação não fizeram isso? E há também quem distribua quentinhas para pessoas em situação de rua neste dia. Então, as belezas da Festa de Santa Bárbara estão nessas relações externas de você ter povo, igreja, caruru, acarajé, você ter o Corpo de Bombeiros, você olhar todo o mundo mais bonito, mais colorido, e as pessoas ali, ano após ano, dizendo que aquela festa é uma festa do povo”, opina.

Curiosidades – A Festa de Santa Bárbara é repleta de curiosidades. A cor vermelha, por exemplo, ao mesmo tempo em que representa Iansã, por conta do fogo, representa também o mártir na Igreja Católica. “Como Bárbara foi martirizada, a igreja sempre celebra a festa dos mártires de vermelho. E o devoto tanto de uma religião como de outra sempre se identifica de vermelho como uma cor que mostra o sangue, a vida, a força e a vitalidade, por isso que Santa Bárbara e Iansã estão sempre relacionadas com a ideia do vermelho e do branco”, conta padre Lázaro.

Outra curiosidade é que Santa Bárbara tem uma igreja dedicada a ela no bairro da Liberdade, que também realiza a Festa de Santa Bárbara, mas trata-se de uma Igreja Católica Independente de Tradição Salomaniana, que não está em comunhão com o Papa.

Patrimônio Imaterial – Este ano fez 15 anos que a Festa de Santa Bárbara foi registrada como Patrimônio Imaterial da Bahia. A pesquisadora Carla Bahia fazia parte da equipe do Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC), em 2004, ano em que o pedido de abertura do processo da festa como Patrimônio Imaterial da Bahia foi feito, sendo a primeira festa popular a ter o pedido de registro.

Ela foi responsável pelo comunicado da salvaguarda temporária da festa no Diário Oficial do Estado, em 2004, e foi consultora, editora de texto e uma das pesquisadoras responsáveis pela produção do livro Festa de Santa Bárbara Caderno do IPAC 5, disponível para download.

“Desde aquele momento de abertura do processo eu não parei de ir atrás de informação. Todos os dias, independentemente da época do ano, se eu tiver qualquer coisa relacionada à Festa de Santa Bárbara, eu anoto, eu leio, eu pesquiso e converso com pessoas na rua para entender essa relação das pessoas com algo que demonstra a formação da nossa história. Para mim, a marca maior da Festa de Santa Bárbara é o valor das pessoas que construíram a história dessa cidade. A gente precisa valorizar essas pessoas. A gente precisa valorizar as festas populares, porque elas trazem sempre a marca de sobrevivência. Alguém sobreviveu para contar essa história. As festas populares são a história de pessoas que sobreviveram e que tentaram ressignificar a realidade que viveram”, conclui.